Raniero Cantalamessa – Pregações da Quaresma 2012

PREGAÇÕES DA QUARESMA

2012

1ª Pregação da Quaresma 09-03-2012

de Raniero Cantalamessa

Em preparação para o ano da fé proclamado pelo Santo Padre Bento XVI (12 de outubro de 2012 -24 de novembro de 2013), as quatro pregações da Quaresma têm a intenção de retomar o impulso e o frescor da nossa fé, através de um contato renovado com os “gigantes da fé “do passado. Daí o título, retirado da carta aos Hebreus, e que foi dado para todo o ciclo: “Lembrai-vos dos vossos dirigentes, que vos anunciaram a palavra de Deus. Imitai-lhes a fé” (Hb 13,7).

Iremos cada vez para a escola de um dos quatro grandes doutores da Igreja oriental – Atanásio, Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa – para ver o que cada um deles nos diz hoje, sobre o dogma do qual foram o defensor, ou seja, respectivamente, a divindade de Cristo, o Espírito Santo, a Trindade, o conhecimento de Deus. Em outro momento, se Deus quiser, vamos fazer a mesma coisa com os grandes doutores da Igreja do Ocidente: Agostinho, Ambrósio, e Leão Magno.

O que gostaríamos de aprender com os Padres não é tanto como proclamar a fé no mundo, ou seja, a evangelização, e nem sequer como defender a fé contra os erros, ou seja, a ortodoxia; realmente o que queremos é o aprofundamento da própria fé, redescobrir, por trás deles, a riqueza, a beleza e a felicidade do crer. Passar, como diz Paulo, “de fé em fé” (Rm 1,17), de uma fé que se acredita à uma fé vivida. Será justamente um grande crescimento “voluminoso” de fé dentro da Igreja que constituirá depois a maior força no anúncio dessa ao mundo e a melhor defesa da sua ortodoxia.

O Padre de Lubac afirmou que nunca houve na história uma renovação da Igreja que não tenha sido também um retorno aos Padres. O Concílio Vaticano II não é nenhuma exceção, do qual estamos nos preparando para comemorar o 50º aniversário. Ele está cheio de citações dos Padres; muitos dos seus protagonistas foram Patrólogos. Depois da Escritura, os Padres são a segunda “camada” de terreno sobre a qual assenta e da qual extrai sua seiva a teologia, a liturgia, a exegese bíblica e toda a espiritualidade da Igreja.

Em certas catedrais góticas da Idade Média vemos algumas estátuas curiosas: personagens com tamanhos imponentes que sustentam, sentados sobre os ombros, homens muito pequenininhos. É uma representação em pedra de uma convicção que os teólogos do tempo formulavam com estas palavras: “Nós somos como anões sentados nos ombros de gigantes, para que possamos ver coisas e mais longe do que eles, não pela agudeza do nosso olhar ou por causa da altura do corpo, mas para que sejamos levados mais alto e elevados à altura gigantesca”( Bernardo di Chartres, in Giovanni di Salisbury, Metalogicon, III, 4 – Corpus Chr. Cont. Med., 98, p.116). Os gigantes eram, naturalmente, os Padres da Igreja. E isso nos acontece também hoje.

1. Atanásio, o defensor da divindade de Cristo

Começamos nossa análise com Santo Atanásio, bispo de Alexandria, nascido em 295 d.C. e morto em 373 d.C.. Poucos Padres deixaram uma marca tão profunda na história da Igreja. Ele é lembrado por muitas coisas: pela influência que teve na difusão do monaquismo, graças à sua “Vida de Antônio”, por ter sido o primeiro a reivindicar a liberdade da Igreja também em um estado cristão” (Atanasio, Historia Arianorum, 52,3: “O que que o Imperador tem a ver com a Igreja?”), pela sua amizade com os bispos ocidentais, favorecida pelos contatos feitos durante o exílio que marca um fortalecimento dos laços entre Alexandria e Roma …

Mas não é sobre isso que queremos ocupar-nos. Kierkegaard, no seu Diário, tem um pensamento curioso: “A terminologia dogmática da Igreja primitiva é como um castelo assombrado, onde repousam num sono profundo os príncipes e princesas mais graciosos. Basta somente acordá-los, para que pulem de pé com toda a sua glória” [S. Kierkegaard, Diario, II A 110 (Trad.ital. di C. Fabro, Brescia 1962, nr. 196; Tradução nossa para o português)]. O dogma que Atanásio nos ajuda a “acordar” e fazer brilhar em toda a sua glória é o da divindade de Cristo; por essa sofreu sete vezes o exílio.

O bispo de Alexandria está bem convencido de não ter sido o descobridor dessa verdade. Todo o seu trabalho consistirá, pelo contrário, no mostrar que esta sempre foi a fé da Igreja; que nova não é a verdade, mas a heresia contrária. O seu mérito, neste campo, foi aquele de remover aqueles obstáculos que tinham impedido até agora um reconhecimento pleno e sem reticências da divindade de Cristo no contexto cultural grego.

Um desses obstáculos, talvez o principal, era o hábito grego de definir a essência divina com o termo agennetos, não-gerado. Como proclamar que o Verbo é verdadeiro Deus, já que esse é Filho, ou seja gerado pelo Pai? Era fácil para Ario estabelecer a equivalência: gerado = feito, ou seja ir de genetos para genetos, e concluir com a célebre frase que fez explodir o caso: ” Que houve um tempo em que o Filho (ainda) não existia” (Em grego, ainda mais sucintamente: en ota ouk en: houve quando não havia). Isto era o mesmo que fazer de Cristo uma criatura, embora não “como as outras criaturas”. Atanásio defendeu ao máximo o genitus non factus de Nicéia, “gerado, não criado”. Ele resolve a controvérsia com a simples observação: “O termo agenetos foi inventado pelos gregos, que não conheciam o Filho”(Atanasio, De decretis Nicenae synodi, 31).

Outro obstáculo cultural para o pleno reconhecimento da divindade de Cristo, menos sentido no momento, mas não menos ativo, era a doutrina de uma divindade intermediária, o deuteros theos, ligado à criação do mundo material. A partir de Platão, esse tornou-se um dado comum a muitos sistemas religiosos e filosóficos da antiguidade. A tentação de assimilar o Filho, “por meio do qual foram criadas todas as coisas”, a esta entidade intermediária que tinha permanecido serpenteando a especulação cristã, embora não na vida da Igreja. O resultado era um esquema tripartido do ser: no topo de tudo, o Pai não-gerado – depois dele, o Filho (e mais tarde também o Espírito Santo) e por fim as criaturas.

A definição do homoousios, do “genitus non factus”, remove para sempre o principal obstáculo do helenismo para o reconhecimento da plena divindade de Cristo e obra a catarse cristã do universo metafísico dos gregos. Com esta definição, uma única linha de demarcação é desenhada na vertical do ser e esta linha não divide o Filho do Pai, mas o Filho das criaturas. Querendo colocar numa frase o significado perene da definição de Nicéia, podemos formulá-la assim: em todas as épocas e culturas, Cristo deve ser proclamado “Deus”, não em qualquer sentido derivado ou secundário, mas no sentido mais forte que a palavra “Deus” tem em tal cultura.

Atanásio fez da manutenção dessa conquista o propósito da sua vida. Quando todos, imperadores, bispos e teólogos, oscilavam entre uma rejeição e uma tentativa de acordo, ele permaneceu inflexível. Houve momentos em que a futura fé comum da Igreja vivia no coração de um só homem: o seu. Da atitude para com ele se decidia de que parte cada um estava.


2. O argumento soteriológico

Porém mais importante que insistir na fé de Atanásio na plena divindade de Cristo, que é bem conhecido e pacífico, é saber o que o motiva no campo de batalha, de onde lhe vem uma certeza tão absoluta. Não da especulação, mas da vida; mais especificamente, da reflexão sobre a experiência que a Igreja faz da salvação em Cristo Jesus.

Atanásio desloca o interesse da teologia do cosmos ao homem, da cosmologia à soteriologia. Referindo-se à tradição eclesiástica antes de Orígenes, especialmente em Irineu, Atanásio valoriza os resultados elaborados na longa batalha contra o gnosticismo, que o tinha levado a concentrar-se na história da salvação e da redenção humana. Cristo não se coloca mais, como na época dos apologistas, entre Deus e o Cosmos, mas sim entre Deus e o homem. Que Cristo seja Mediador não significa que ele esteja entre Deus e o homem (mediação ontológica, muitas vezes entendida em sentido subordinacionista), mas que une Deus e o homem. Nele, Deus se faz homem e o homem se faz Deus, ou seja é divinizado (Atanasio, De incarnatione 54, cfr. Ireneu, Adv. haer. V, praef).

Sobre este pano de fundo, coloca-se a aplicação que Atanásio faz do argumento soteriológico em função da demonstração da divindade de Cristo. O argumento soteriológico não nasce com a controvérsia ariana; está presente em todas as grandes controvérsias cristológicas antigas, da antignóstica àquela antimonotelita. Na sua formulação clássica se lê: “Quod non est assumptum non est sanatum”, “O que não é assumido não é salvo” (Gregório Nazianzeno, Carta Cledonio, PG 37, 181) Isso se adapta dependendo dos casos, a fim de refutar o erro do momento, que pode ser a negação da carne humana de Cristo (gnosticismo), ou da sua alma humana (apolinarismo), ou da sua vontade livre (monotelismo).

No uso que faz Atanásio, pode-se formular da seguinte forma: “O que não é assumido por Deus não é salvo”, onde a força está toda naquele breve acréscimo “por Deus”. A salvação exige que o homem não seja assumido por qualquer intermediário, mas pelo próprio Deus: “Se o Filho é uma criatura – Atanásio escreve – o homem permaneceria mortal, não ficando unido a Deus”, e ainda: “O homem não seria divinizado, se o Verbo que se fez carne não fosse da mesma natureza do Pai”( Atanasio, Contra Arianos II 69 e I 70). Atanásio formulou muitos séculos antes de Heidegger, e tomando-a com uma seriedade muito maior, a idéia de que “só um Deus pode nos salvar,” nur noch ein gott kann uns retten (Antwort. Martin Heidegger im Gespräch, Pfullingen 1988).

As implicações soteriológicas que Atanásio tira do homoousios de Nicéia são numerosas e profundíssimas. Definir o Filho “consubstancial” ao Pai significava colocá-lo em um nível tal, pelo qual nada absolutamente podia permanecer fora do seu raio de ação. Significava também enraizar o significado de Cristo no mesmo fundamento no qual estava enraizado o ser de Cristo, ou seja no Pai. Jesus Cristo, quer dizer, não é, na história e no universo, uma segunda presença aditiva com relação àquela de Deus; pelo contrário, ele é a presença e a importância mesma do Pai. Escreve Atanásio:

“Bom como é, o Pai, com o seu Verbo que é também Deus, guia e sustenta o mundo inteiro, porque a criação, iluminada pela sua direção, pela sua providência e pela sua ordem, possa persistir no ser… O onipotente e santíssimo Verbo do Pai, penetrando todas as coisas e chegando em toda parte com a sua força, dá luz a toda realidade e tudo contém e abraça em si mesmo. Não há nenhum ser que caia fora fora do seu domínio. Todas as coisas recebem totalmente dele a vida e dele são mantidas nela: as criaturas individuais em sua individualidade e o universo criado em sua totalidade” (Atanasio, Contra gentes 41-42).

Deve-se, contudo, fazer uma clarificação importante. A divindade de Cristo não é um “postulado” prático, como é, para Kant, a própria existência de Deus (I.Kant, Crítica da razão prática, cap. III, VI). Não é um postulado, mas a explicação de um “dado”. Seria um postulado, e, portanto, uma dedução humana teológica, se se partisse de uma certa ideia de salvação e se deduzisse dela a divindade de Cristo como a única capaz de obrar tal salvação; é em vez a explicação de um dado se se começa, como faz Atanásio, a partir de uma experiência de salvação e se demonstra como essa não poderia existir se Cristo não fosse Deus. Não é sobre a salvação que se fundamenta a divindade de Cristo, mas é sobre a divindade de Cristo que se fundamenta a salvação.

3. Corde creditur!

Mas é hora de voltar-nos a nós mesmos para ver o que podemos aprender hoje da épica batalha suportada por Atanásio. A divindade de Cristo é hoje o verdadeiro “articulus stantis et cadentis ecclesiae”, a verdade com a qual a Igreja está de pé ou cai. Se em outros tempos, quando a divindade de Cristo era pacificamente aceita por todos os cristãos, se podia pensar que tal “artigo” fosse a “justificação gratuita por fé”, agora não é mais assim. Podemos dizer que o problema vital para o homem de hoje é estabelecer a forma como o pecador é justificado, quando nem mesmo se acredita mais numa necessidade de justificação, ou se está convencido de encontrá-la em si mesmo? “Eu mesmo hoje me acuso – Sartre faz gritar do palco uma das suas personagens – e só eu posso também absolver-me, eu o homem. Se Deus existe, o homem não é nada” (J.-P. Sartre, Il diavolo e il buon Dio, X, 4, Gallimard, Parigi 1951, p. 267 s.).

A divindade de Cristo é a pedra angular que suporta os dois principais mistérios da fé cristã; a Trindade e a Encarnação. São como duas portas que se abrem e se fecham juntas. Descartada aquela pedra, todo o edifício da fé cristã desmorona sobre si mesmo: se o Filho não é Deus, de quem está formada a Trindade? Tinha-o denunciado claramente Santo Atanásio, escrevendo contra os arianos:

“Se o Verbo não existe junto com o Pai desde toda a eternidade, então não existe uma Trindade eterna, mas primeiro houve a unidade e depois, com o passar do tempo, por acréscimo, começou a ser a Trindade “(Atanasio, Contra Arianos I, 17-18, PG 26, 48).

(Uma idéia – esta da Trindade que se forma, “por acréscimo” – que voltou a ser proposta, em anos não muito distantes, por algum teólogo que aplicou à Trindade o esquema dialético do devir de Hegel!) Bem antes de Atanásio, Sao João tinha estabelecido este vínculo entre os dois mistérios: “Todo aquele que nega o Filho, também não possui o Pai. O que confessa o filho também possui o Pai (I Jo 2,23). As duas coisas permanecem ou caem juntas, mas se caem juntas então devemos infelizmente dizer com Paulo que nós cristãos “somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1 Cor 15,19).

Nós devemos deixar-nos investir plenamente daquela pergunta tão respeitosa, mas tão direta de Jesus: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”, E daquela ainda mais pessoal: “Acreditas?” Acreditas realmente? Acreditas com todo o coração? São Paulo diz que “quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). No passado, a profissão da fé verdadeira, ou seja, o segundo momento deste processo tem tido às vezes tanta importância que deixou na sombra aquele primeiro momento que é o mais importante e que se desenvolve nas profundidades recônditas do coração. “É da raiz do coração que se eleva a fé”, exclama Santo Agostinho (Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 26,2 ;PL 35,1607)

Será talvez necessário destruir em nós, que cremos, e em nós homens de Igreja, a falsa persuasão de já crêr, de estar em dia no que respeita à fé. É necessário provocar a dúvida –óbviamente não de Jesus, mas de nós – para então podermos começar a busca de uma fé mais autêntica. Talvez que não seja um bem, por um pouco de tempo, não querer demonstrar nada a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas raízes no coração! Jesus perguntou a Pedro três vezes: “Me amas?”. Sabia que na primeira e na segunda vez, a resposta tinha saído muito rapida, para ser aquela verdadeira. Finalmente, na terceira vez, Pedro compreendeu. Também a questão da fé deve ser colocada assim para nós; por três vezes, insistentemente, até que nós não nos demos conta e entremos na verdade: “Crês? Tu crês? Crês realmente?”. Talvez no final responderemos: “Não, Senhor, eu realmente não creio com todo o coração e com toda a alma. Aumenta a minha fé!”.

Atanásio nos lembra, entretanto, uma outra importante verdade: que a fé na divindade de Cristo não é possível, se não se faz também a experiência da salvação obrada por Cristo. Sem esta, a divindade de Cristo se torna facilmente uma idéia, uma tese, e sabemos que à uma idéia é sempre possível opor outra idéia, e à uma tese, outra tese. Só à uma vida – diziam os Padres do deserto – não há nada que se possa opor.

A experiência da salvação é feita através da leitura da palavra de Deus (e tomando-a por aquilo que é, palavra de Deus!), administrando e recebendo os sacramentos, especialmente a Eucaristia, lugar privilegiado da presença do Ressuscitado, exercitando os carismas, mantendo um contato com a vida da comunidade dos que creem, pregando Evagrio, no IV século, formulou esta célebre frase: “Se é teólogo, rezarás realmente e se rezas realmente será teólogo”( Evagrio, De oratione 61 ;PG 79, 1165).

Atanásio impediu que a investigação teológica permanecesse prisioneira da especulação filosófica das várias “escolas” e se tornasse ao invés disso aprofundamento do dado revelado na linha da Tradição. Um eminente historiador protestante reconheceu em Atanásio um mérito particular neste campo: “Graças à ele – escreveu – a fé em Cristo permaneceu rigorosa fé em Deus e, de acordo com sua natureza, totalmente distinta de todas as outras formas – pagãs, filosóficas, idealistas – de fé… Com ele, a Igreja tornou-se novamente instituição de salvação, ou seja, no sentido estrito do termo, ‘Igreja’, cujo conteúdo próprio e determinante foi constituído pela pregação de Cristo” (H. von Campenhausen, I Padri greci, Brescia 1967, pp. 103-104).

Tudo isso nos desafia hoje de maneira especial, depois que a teologia foi definida como uma “ciência” e é professada em círculos acadêmicos, muito mais descomprometida da vida da comunidade dos que creem do que era na época de Atanásio, a escola teológica, chamada Didaskaleion, florescida em Alexandria por obra de Clemente e de Orígenes. A ciência exige do pesquisador que “domine” a sua matéria e que seja “neutro” diante do objeto da própria ciência; mas como “dominar” aquele que pouco antes tens adorado como o teu Deus? Como manter-se neutro quanto ao objeto quando esse objeto é Cristo? Foi um dos motivos que me levaram, em algum momento da minha vida, a abandonar o ensino acadêmico para dedicar-me a tempo integral ao ministério da palavra. Lembro-me do pensamento que surgia em mim, depois de participar de congressos ou debates bíblicos e teológicos, especialmente no exterior: “Já que o mundo universitário voltou as costas para Jesus Cristo eu voltarei as costas para o mundo universitário”.

A solução para este problema não é abolir o estudo acadêmico da teologia. A situação italiana nos faz ver os efeitos negativos produzidos pela ausência de faculdades teológicas nas universidades estaduais. A cultura católica e religiosa no geral foi empurrada à um gheto; nas livrarias seculares não se encontra nenhum livro religioso, só se for de algum tema esotério ou de moda. O diálogo entre teologia e conhecimento humano, científico e filosófico, se realiza “à distância”, e não é a mesma coisa. Falando em ambientes universitários, eu digo muitas vezes para não seguir o meu exemplo (que continua a ser uma escolha pessoal), mas de valorizar ao máximo o privilégio de que gozam, buscando se for o caso tentar acoplar ao estudo e ao ensino também algumas atividades pastorais compatíveis com ele.

Se não se pode e não se deve tirar a teologia dos ambientes acadêmicos, há porém uma coisa que os teólogos acadêmicos podem fazer e é ser muito humilde para reconhecer os seus limites. A sua não é a única, nem a mais alta expressão da fé. O Padre Henri de Lubac escreveu: “O ministério da pregação não é a vulgarização de um ensinamento doutrinário em forma mais abstrata, que seria anterior e superior a ele. É, pelo contrário, o mesmo ensinamento doutrinal, na sua forma mais alta. Isto era verdade da primeira pregação cristã, aquela dos apóstolos, e é também verdadeira da pregação daqueles que lhes sucedem na Igreja: os Padres, os Doutores e os nossos Pastores no tempo presente”( H. de Lubac, Exégèse médièvale, I, 2, Parigi 1959, p. 670.). H. U. von Balthasar, por sua vez, fala da “missão da pregação na Igreja, à qual está sujeita a mesma missão teológica” (H.U. von Balthasar, La preghiera contemplativa, citado também por De Lubac.).


4. “Coragem, eu estou aqui!”

Voltemos para concluir a divindade de Cristo. Ela ilumina toda a vida cristã.

Sem a fé na divindade de Cristo:

Deus está longe,

Cristo permanece no seu tempo,

o Evangelho é um dos muitos livros religiosos da humanidade,

a Igreja, uma simples instituição,

a evangelização, uma propaganda,

a liturgia, uma rememoração de um passado que não existe mais,

a moral cristã, um peso que é tudo, menos leve, e um jugo que é tudo, menos suave.

Mas com a fé na divindade de Cristo:

Deus é Emanuel, o Deus conosco,

Cristo, é o Ressuscitado que vive no Espírito,

o Evangelho, a palavra definitiva de Deus para toda a humanidade,

a Igreja, sacramento universal de salvação,

a evangelização, partilha de um dom,

a liturgia, encontro alegre com o Ressuscitado,

a vida presente, o começo da eternidade.

De fato foi escrito: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna” (Jo 3, 36). A fé na divindade de Cristo nos é particularmente indispensável neste momento para manter viva a esperança sobre o futuro da Igreja e do mundo. Contra os gnósticos, que negavam a verdadeira humanidade de Cristo, Tertuliano elevou, no seu tempo, o grito: “Parce unicae spei totius orbis”, não tirem do mundo a sua única esperança!(Tertulliano, De carne Christi, 5, 3 ;CC 2, p. 881). Nós devemos dizer hoje àqueles que se recusam a acreditar na divindade de Cristo.

Aos apóstolos, depois de ter acalmado a tempestade, Jesus dirigiu uma palavra que repete hoje aos seus sucessores: “Coragem! Sou eu, não tenhais medo “(Mc 6,50).

2ª Pregação da Quaresma 16-03-2012

de Raniero Cantalamessa

 

São Gregório Nazianzeno, mestre de fé na trindade

Em anos não distantes, tem-se havido propostas teológicas que, apesar das profundas diferenças entre elas, tinham um esquema de fundo comum, às vezes claro, às vezes implícito. Tal esquema é muito simples, porque redutivo. Os dois maiores mistérios da nossa fé são a Trindade e a Encarnação: Deus é uno e trino; Jesus Cristo é Deus e homem. A essência das propostas às quais me refiro diz assim: Deus é uno, e Jesus Cristo é homem. Cai a divindade de Cristo e, com essa, a Trindade.

O resultado deste processo é que acaba-se aceitando tacitamente e hipocritamente a existência de duas fé e de dois cristianismos diferentes, que só têm o nome em comum: o cristianismo do Credo da Igreja, das declarações ecumênicas conjuntas, nas quais, com as palavras do símbolo Niceno-Constantinopolitano, continua a professar a fé na Santíssima Trindade e na plena divindade de Cristo, e o cristianismo de grandes segmentos da cultura, também exegética e teológica, nas quais estas mesmas verdades são ignoradas ou interpretadas de forma bastante diferente.

Neste clima, é particularmente oportuna uma revisitação dos Padres da Igreja, não só para conhecer o conteúdo do dogma no seu estado nascente, mas ainda mais para reencontrar a unidade entre a fé professada e a fé vivida, entre a “coisa” e o seu “enunciado”. Para os Padres a Trindade e a unidade de Deus, a dualidade das naturezas e a unicidade da pessoa de Cristo não eram verdades para se discutir na teoria somente ou nos livros em diálogo com outros livros; eram realidade vitais. Parafraseando uma piada que circula nos ambientes esportivos, poderemos dizer que tais verdades não eram para eles questão de vida ou de morte; eram muito mais!

1. Gregório Nazianzeno, cantor da Trindade

O gigante sobre o qual queremos subir nas costas hoje, é São Gregório Nazianzeno, o horizonte que queremos vasculhar com ele é a Trindade. É seu o grandioso quadro que mostra o desdobrar-se da revelação da Trindade na história e a pedagogia de Deus que se revela nele. O Antigo Testamento, escreve, proclama abertamente a existência do Pai e começa a anunciar veladamente aquela do Filho; O Novo Testamento proclama abertamente o Filho e começa a revelar a divindade do Espírito Santo; agora, na Igreja, o Espírito nos concede distintamente a sua manifestação e se confessa a glória da beata Trindade. Deus dosou a sua manifestação, adaptando-a aos tempos e à capacidade receptiva dos homens (Cf. Gregorio Nazianzeno, Oratio 31, 26. Trad. portuguesa nossa, Trad ital di C. Moreschini, I cinque discorsi teologici, Roma, Città Nuova, 1986).

Esta divisão tríplice não tem nada a ver com a tese, conhecida sob o nome de Joaquim de Fiore, dos três períodos distintos: aquele do Pai, no Antigo Testamento, aquele do Filho no Novo e aquele do Espírito na Igreja. A distinção de São Gregório se coloca na ordem da manifestação, não do ser ou do agir das Três Pessoas, que estão presentes e obram juntas em todo o arco do tempo.

São Gregório Nazianzeno recebeu da tradição o título de “o Teólogo” (Rô Theólogos), justo por causa da sua contribuição para a compreensão do dogma trinitário. O seu mérito foi ter dado à ortodoxia trinitária a sua formulação perfeita, com frases destinadas à se tornarem patrimônio comum da teologia. O símbolo pseudo-atanasiano “Quicumque”, composto aproximadamente um século depois, deve bastante à Gregório Nazianzeno.

Eis algumas das suas fórmulas cristalinas: “Era, e era, e era: mas era um só. Luz e luz e luz: mas uma só luz. Isto é o que David imaginou quando disse: “Na tua luz veremos a luz” (Sl 35,10). E agora nós a contemplamos e a anunciamos, da luz que é o Pai compreendendo a luz que é o Filho na luz do Espírito: Eis a breve e concisa teologia da Trindade […] Deus, se é que podemos falar de forma sucinta, é indivisível em seres divisíveis uns dos outros”( Oratio 31, 3.14).

A principal contribuição dos Capadócios na formulação do dogma trinitário é aquela de ter levado até o fim a distinção dos dois conceitos de ousia e hipostase, substância e pessoa, criando a base conceitual permanente com a qual se exprime a fé na Trindade. Trata-se de uma das maiores inovações que a teologia cristã introduziu no pensamento humano. Dessa foi possível se desenvolver o moderno conceito de pessoa como relação. O lado fraco da sua teologia trinitária, e que ele mesmo se deu conta, era o perigo de conceber a relação entre a única substância divina e as três hipósteses do Pai, do Filho e do Espírito Santo da mesma forma que a relação que existe na natureza entre as espécies e os indivíduos (Por exemplo, entre a espécie humana e os indivíduos homens), expondo-se assim às acusações de triteísmo (Cf. Basilio, Epistola 236,6).

Gregorio Nazianzeno se esforça para responder a esta dificuldade, dizendo que cada uma das três pessoas divinas não é menos unida às outras duas do que é unida a si mesma (Gregorio Naz., Oratio. 31,16). Rejeita, pelo mesmo motivo, as semelhanças tradicionais de “fonte, riacho, rio” ou “sol, raio, luz”( Ib. 31, 31-33). Ao final admite, porém, candidamente que prefere esse risco ao do modalismo: “É melhor, diz ele, ter uma idéia, talvez insuficiente, da união dos Três, do que ousar uma impiedade absoluta” (Ib. 31, 12).

Por que escolher São Gregório Nazianzeno como mestre de fé na Trindade? O motivo é o mesmo pelo qual escolhemos Atanásio como mestre de fé na divindade de Cristo. É que, para Gregório, a Trindade não é uma verdade abstrata, ou apenas um dogma; é a sua paixão, o seu ambiente vital, algo que vibra o seu coração só com a menção.

Os ortodoxos chamam-no de “o cantor da Trindade”. Isto corresponde perfeitamente ao que sabemos da sua personalidade humana. O Nazianzeno é um homem com um coração maior do que a mente, um temperamento exageradamente sensível, de modo a causar-lhe não poucos sofrimentos e decepções nos seus relacionamentos com os outros, começando com o seu amigo São Basílio.

É na sua produção poética que se revela sobretudo o seu entusiasmo pela Trindade. Ele usa expressões como “a minha Trindade”, “a amada Trindade” [Gregorio Naz., Poemata de seipso, I,15; I, 87 (PG 37, 1251 s.; 1434)]. Gregorio é um apaixonado da Trindade. Escreve sobre si mesmo:

“Desde o dia em que eu renunciei as coisas deste mundo para consagrar a minha alma às contemplações luminosas e celestiais, quando a inteligência suprema me seqüestrou daqui de baixo para colocar-me distante de tudo o que é carnal, daquele dia os meus olhos foram ofuscados pela luz da Trindade … Da sua sublime sede ela espalha sobre todas as coisas o seu brilho inefável… A partir daquele dia eu estou morto para o mundo e o mundo está morto para mim” [Ib., I,1 (PG 37, 984-985)].

Basta comparar estas palavras com as expressões tecnicamente perfeitas, mas frias do símbolo “Quicumque”, que se recitava a um tempo atrás no Ofício divino do domingo, para que nos demos conta da distância que separa a fé vivida pelos Padres daquela formal e repetitiva que se instaura depois deles, ainda se esta última absolve também uma tarefa importante.

2. Não podemos viver sem a Trindade

Agora, como sempre, algumas reflexões sobre aquilo que os Padres podem oferecer-nos, neste campo, para uma renovação da nossa fé. Sabemos que a teologia ocidental sempre teve de se defender contra o risco do triteísmo do qual, temos visto, deve defender-se o Nazianzeno; o risco de enfatizar a unidade da natureza divina, em detrimento da distinção das pessoas.

Sobre este terreno foi possível se desenvolver a visão deística de Descartes e dos Iluministas que prescinde totalmente da Trindade para concentrar-se unicamente em Deus, concebido como Ser supremo ou como “a divindade”. Kant chegou com isso à famosa conclusão de que “da doutrina Trinitária, tomada literalmente, não é possível tirar nada de prático” (E. Kant, Il conflitto delle facoltà, A 50 (WW, ed. W. Weischedel, VI, p.303). Ela, em outras palavras, seria irrelevante para a vida dos homens e da Igreja.

Isto foi sem dúvida um dos fatores que aplainou o caminho do ateísmo moderno. Se tivesse permanecido viva na teologia a idéia do Deus Uno e Trino, antes de falar de um vago “Ser supremo”, não teria sido muito fácil para Feurbach fazer triunfar a sua tese de que Deus é uma projeção que o homem faz de si mesmo e da própria essência. Que necessidade teria então o homem de dividir-se em três: em Pai, Filho e Espírito Santo? E em que sentido a Trindade pode ser a projeção e a sublimação que o espírito humano faz de si mesmo? É o vago deísmo que foi demolido por Feuerbach, não a fé no Deus uno e trino.

Mas se a visão latina da Trindade, por um lado, abre brecha para este desvio deístico, por outro lado contém o remédio mais eficaz contra ele. Nunca seremos o suficientemente gratos a Agostinho por ter feito o seu discurso da Trindade sobre a palavra de João: “Deus é amor” (1 Jo 4,10). Deus é amor: por isso, conclui Agostinho, ele é Trindade! “O amor supõe um que ama, o que é amado e o mesmo amor”( Agostino, De Trinitate, VIII, 10, 14). O Pai é, na Trindade, aquele que ama, a fonte e o princípio de tudo; o filho é aquele que é amado; o Espírito Santo é o amor com o qual se amam.

Todo amor é amor de alguém ou de algo, como todo conhecimento, explicou Husserl, é conhecimento de algo. Não existe um amor “vazio”, sem objeto. Ora, quem ama a Deus, para ser definido amor? O Homem? Mas então é amor só de apenas algumas centenas de milhões de anos. O universo? Mas então é amor somente de algumas poucas dezenas de bilhões de anos. E antes quem amava a Deus para ser amor? Os pensadores gregos e, em geral, as filosofias religiosas de todos os tempos, concebendo a Deus principalmente como um “pensamento”, podiam responder: Deus pensava a si mesmo; era “pensamento puro”, “pensamento de pensamento”. Mas isto não é possível, no momento em que se diz que Deus é antes de mais nada amor, porque o “puro amor de si mesmo” seria então puro egoísmo, que não é exaltação máxima do amor, mas a sua total negação.

E aqui está a resposta da revelação, explicitada pela Igreja com a sua doutrina da Trindade. Deus é amor desde sempre, ab aeterno, porque antes mesmo de que existisse um objeto fora de si para amar, tinha em si mesmo o Verbo, o Filho que amava com amor infinito, ou seja “no Espírito Santo”. Isso não explica como a unidade possa ser simultaneamente trindade (isso é um mistério incognocível por nós porque acontece somente em Deus), mas nos é suficiente, ao menos, intuir porque, em Deus, a unidade deve ser também pluralidade, também trindade.

Um Deus que fosse puro Conhecimento ou pura Lei, ou puro Poder não teria certamente necessidade de ser trino (este fato complicaria ainda mais as coisas); mas um Deus que é acima de tudo Amor sim, porque “em menos de dois, não pode haver amor”. “É necessário – escreveu de Lubac – que o mundo conheça: a revelação do Deus Amor perturba todo o conceito que ele tinha da divindade” (H. de Lubac, Histoire et Esprit, Aubier, Parigi 1950, cap.5).

Aquela do amor é certamente uma analogia humana, mas é sem dúvida aquela que melhor nos permite vislumbrar as profundezas misteriosas de Deus. Nisso se vê como a teologia latina integra aquela grega e as duas não podem dispensar-se mutuamente. O tema do amor está quase inteiramente ausente na teologia trinitária dos orientais que usam de preferência a analogia da luz. É necessário esperar Gregório Palamas para ler, no âmbito grego, algo análogo do que disse Agostinho sobre o amor na Trindade [Gregorio Palamas, Capita physica, 36 (PG 150, 1144s)].

Alguns gostariam de colocar hoje entre parênteses o dogma da Trindade para facilitar o diálogo com as outras grandes religiões monoteístas. É uma operação suicida. Seria como tirar a espinha dorsal de uma pessoa para fazê-la caminhar mais facilmente! A Trindade está tão impressa na teologia, liturgia, espiritualidade e toda a vida cristã que renunciar a ela significaria iniciar uma outra religião, completamente diferente.

O que deve ser feito é, antes, como os Padres nos ensinam, tirar esse mistério dos livros de teologia e colocá-los na vida, de modo que a Trindade não seja só um mistério estudado e formulado corretamente, mas vivido, adorado, gozado. A vida cristã se desenvolve, do começo ao fim, no sinal e na presença da Trindade. Na aurora da vida, fomos batizados “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” e, no final, se tivermos a graça de uma morte cristã, ao nosso lado serão pronunciadas estas palavras: “Parte, alma cristã, deste mundo: em nome do Pai que te criou, do Filho que te redimiu e do Espírito Santo que te santificou”.

Entre estes dois momentos extremos, são colocados outros momentos assim chamados “de passagem” que, para um cristão, são marcados pela invocação da Trindade. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo os esposos são unidos em matrimônio e se trocam o anel e os sacerdotes e os bispos são consagrados. Em nome da Trindade iniciavam uma vez os contratos, as sentenças e cada ato importante da vida civil e religiosa. A Trindade é o ventre do qual nascemos (cf. Ef 1,4) e é também o porto para o qual todos navegamos. É “o oceano de paz” do qual tudo jorra e no qual tudo flui

3. “O beata Trinitas!”

São Gregório Nazianzeno deveria ter suscitado em nós o desejo ardente da Trindade: fazer dela a “nossa” Trindade, a “amada” Trindade, a “cara” Trindade. Alguns desses toques de sincera adoração e espanto sobressaem nos textos da solenidade da Santíssima Trindade. Devemos fazê-los passar da liturgia para a vida. Existe algo mais santo que podemos fazer com relação à Trindade do que buscar compreendê-la, e é entrar nela! Não podemos abraçar o oceano, mas podemos entrar nele; não podemos abraçar o mistério da Trindade com a nossa mente, mas podemos entrar nele!

A “porta” para entrar na Trindade é só uma, Jesus Cristo. Com a sua morte e ressurreição ele inaugurou para nós um caminho novo e vivente para entrar no santo dos santos que é a Trindade (cf. Hb 10,19-20) e deixou-nos os meios para poder segui-lo nesta viagem de retorno . O primeiro e mais universal é a Igreja. Quando se quer atraversar um braço de mar, dizia Agostinho, a coisa mais importante não é estar na margem e aguçar a visão para ver o que há do outro lado, mas é subir na barca que leva até a margem. E também para nós a coisa mais importante não é especular sobre a Trindade, mas permanecer na fé da Igreja que vai em direção a ela (Agostino, De Trinitate, IV,15,30; Confessioni, VII, 21).

Na Igreja, a Eucaristia é o meio por excelência. A Missa é uma ação trinitária do início ao fim; começa em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e termina com a benção do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Essa é a oferta que Jesus, cabeça e corpo místico, faz de Si mesmo ao Pai no Espírito Santo. Através dele, entramos realmente no coração da Trindade.

Para os irmãos ortodoxos, um importante meio para entrar no mistério é o ícone. A Trindade de Rublev é uma síntese visual da doutrina trinitária dos Capadócios, particularmente de Gregório Nazianzeno. Nela percebe-se, em igual medida, movimento incessante e quietude sobre-humana, transcendência e condescendência. O dogma da unidade e trindade de Deus é expresso pelo fato de que as figuras presentes são três e bem distintas, mas muito semelhantes entre elas. Estão idealmente contidas dentro de um círculo que destaca a sua unidade; mas com o seu diverso movimento e disposição proclamam também a sua distinção. O santo, cujo mosteiro foi pintado o ícone, São Sérgio de Radonez, havia se distinguido na história Rússa por ter trazido a unidade entre os líderes em desacordo entre si e de ter tornado assim possível a libertação da Rússia pelos Tártaros que a tinham invadido. O seu lema – que Rublev tem se esforçado para interpretar o ícone – era: “Contemplando a Santíssima Trindade, vencer a discórdia ódiosa deste mundo.” São Gregório Nazianzeno tinha expressado um pensamento semelhante nestes versos que parecem o seu testamento espiritual:

Busco a solidão, um lugar inacessível para o mal,

Onde com mente única buscar o meu Deus

E aliviar a minha velhice com a doce esperança do céu.

O que vou deixar à Igreja? Vou deixar as minhas lágrimas! …

Dirijo o meu pensamento para a morada que não conhece ocaso,

Para a minha querida Trindade, única luz,

Da qual só a sombra escura me comove agora. ”

A espiritualidade latina não é menos rica de ajuda para fazer da Trindade um mistério próximo, amado. Ela também insiste sobre o movimento oposto: não nós que entramos na Trindade, mas a Trindade entraem nós. Natradição ortodoxa, a doutrina da inabitação é referida de preferência à pessoa do Espírito Santo. É a teologia latina que desenvolveu, em todo o seu potencial, a doutrina bíblica da inabitação de toda a Trindade na alma: “O meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada”. (Jo 14, 23). Pio XII reservou para ela um lugar na sua Mystici Corporis, dizendo que graças a ela nós “participamos desde agora na alegria e na bem aventurança da Trindade”.

São João da Cruz diz que “o amor foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5,5) não é nada mais do que o amor com o qual o Pai, desde sempre, ama o Filho. É um transbordamento do amor divino da Trindade para nós. Deus comunica à alma “o mesmo amor que comunica ao Filho, mesmo que isso não ocorra naturalmente, mas por união… A alma participa de Deus, cumprindo, junto com ele, a obra da Santíssima Trindade”. A beata Elizabete da Trindade nos sugere um método simples para traduzir tudo isso num programa de vida: “Todo o meu exercício consiste em entrar em mim mesma e perder-me nos Três que estão lá”.

Eu vejo nisso uma razão a mais, e entre as mais profundas, para evangelizar. Lia dias atrás, na liturgia das horas, as palavras de Deus em Isaías: “Eis para quem estão voltados meus olhos: para quem é humilde, que tem o espírito aflito e trema diante da minha palavra” (Isaías 66,2). Fiquei impressionado com um pensamento. Eis, disse a mim mesmo, em que consiste a grande diferença entre quem é batizado e quem não o é: sobre quem é batizado, Deus “dirige o olhar”, está presente intencionalmente, com o seu amor e a sua providência; em quem é batizado, ele não dirigem somente o olhar mas vem habitar nele pessoalmente, e mais com todas as três Pessoas divinas. É verdade que uma presença intencional correspondida pode ser mais aceitável a Deus do que uma presença batismal negligenciada ou recusada (e isso deve encher-nos de humildade e responsabilidade), mas seria ingratidão não reconhecer a diferença que faz ser ou não ser cristãos.

Terminamos a recitando juntos a doxologia que conclui o cânon da Missa e que constitui a mais breve e a mais densa oração trinitária da Igreja: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai Todo poderoso, na unidade do Espírito Santo, Toda honra e Toda a Glória agora e para sempre. Amém”.

 

3ª Pregação da Quaresma 23-03-2012

de Raniero Cantalamessa

 

1. A fé termina nas coisas

O filósofo Edmund Husserl resumiu o programa da sua fenomenologia no lema: Zu den Sachen selbst!, dirigir-se para as mesmas coisas, para as coisas como elas realmente são na realidade, antes da conceituação e formulação delas. Outro filósofo, vindo depois dele, Sartre, diz que “as palavras e, com elas, o significado das coisas e os modos do seu uso” são apenas “os sinais sutis de reconhecimento que os homens têm traçado na superfície deles”: é necessário superá-los para ter a súbita revelação, que tira o fôlego, da “existência” das coisas (J.-P. Sartre, La Nausea, trad. ital, Milano 1984, p. 193 s, Tradução Portuguesa nossa).

Santo Tomás de Aquino tinha formulado muito antes um princípio análogo em referência às coisas ou aos objetos da fé: “Fides non terminatur ad enunciabile, sed ad rem”: a fé não termina nos enunciados, mas na realidade (Tomas de Aquino, Suma teologica, II-IIae , q. 1,a.2,ad 2.). Os Padres da Igreja são modelos insuperáveis desta fé que não para nas fórmulas, mas vai até a realidade. Tendo passado esta era de ouro dos grandes padres e doutores, vemos quase que imediatamente o que um estudioso do pensamento patrístico define “o triunfo do formalismo” [Cf. G. Prestige, God in Patristic Thought, London 1936, chap. XIII( trd. Ital., Dio nei pensiero dei Padri, Bologna, il Mulino, 1969, pp. 273 ss), Tradução portuguesa nossa]. Conceitos e termos, como substância, pessoa, hipóstase, são analisados e estudados por si mesmos, sem a constante referência à realidade que com eles os criadores do dogma tinham tentado expressar.

Atanásio é talvez o caso mais exemplar de uma fé que está mais preocupada com o conteúdo do que com o seu enunciado. Por algum tempo, depois do Concílio de Nicéia, ele parece quase ignorar o termo homousios, consubstancial, embora defendendo com a tenacidade que vimos na última vez o seu conteúdo, ou seja, a plena divindade do Filho e a sua igualdade com o Pai. Também está pronto para acolher termos equivalentes para ele, desde que ficasse claro que se pretendia manter firme a fé de Nicéia. Só mais tarde, quando ele percebeu que aquele termo era o único que não deixava brechas para as heresias, fez cada vez mais uso dele.

Destacamos isto porque conhecemos os danos que causados à comunhão eclesial o fato de dar mais importância ao acordo dos termos do que ao conteúdo da fé. Nos últimos anos tem sido possível restaurar a comunhão com algumas igrejas orientais, as assim chamadas monofisitas, tendo reconhecido que o contraste deles com a fé de Calcedônia estava no significado diferente atribuído aos termos ousia e hipóstase, e não na substância da doutrina. Também o acordo entre a Igreja Católica e a Federação Mundial das Igrejas Luteranas sobre o tema da justificação pela fé, assinado em 1998, mostrou que o conflito secular sobre este ponto estava mais nos termos do que na realidade. As fórmulas, uma vez inventadas, tendem a fossilizar-se, tornando-se bandeiras e sinais partidárias, ao invés de expressões de fé vivida.

2. São Basílio e a divindade do Espírito Santo

Hoje subimos nos ombros de um outro gigante, São Basílio o Grande (329-379), para analisar com ele, uma outra realidade da nossa fé, o Espírito Santo. Veremos em breve como também ele é um modelo da fé que não pára nas fórmulas mas vai até a realidade.

Sobre a divindade do Espírito Santo, Basílio não fala nem a primeira e nem a última palavra, ou seja não é aquele que abre o debate e nem sequer aquele que o conclui. Quem abriu a discussão sobre o estatuto ontológico do Espírito foi Santo Atanásio. Até ele, a doutrina sobre o Paráclito permaneceu na sombra, e entendemos o motivo: naõ era possível definir a posição do Espírito Santo na divindade, antes de ter definido aquela do Filho. Somente se limitava a dizer no símbolo de fé: “e creio no Espírito Santo”, sem outros acréscimos.

Atanásio, nas Cartas a Serapião, inicia o debate que levará à definição da divindade do Espírito Santo no Concílio de Constantinopla em 381. Ensina que o Espírito é plenamente divino, consubstancial com o Pai e com o Filho, que não pertence ao mundo das criaturas, mas ao do criador e a prova, também aqui, é que o seu contato nos santifica, nos diviniza, coisa que não poderia fazer se não fosse ele mesmo Deus.

Eu disse que Basílio não falou nem sequer a última palavra. Ele se abstém de aplicar ao Paráclito o título de “Deus” e aquele de “consubstancial”. Afirma claramente a fé na plena divindade do Espírito usando expressões equivalentes, como a igualdade com o Pai e o Filho na adoração (a isotimia), a sua homogeneidade e não heterogeneidade, no que diz respeito a eles. São os termos nos quais a divindade do Espírito Santo foi definida no Concílio Ecumênico de Constantinopla do ano 381 e que constroem o artigo de fé sobre o Espírito Santo que professamos ainda hoje no credo.

Essa atitude prudencial de Basílio, dirigida a não distanciar ainda mais o partido adversário dos Macedonianos, provocou-lhe a crítica de Gregório Nazianzeno que coloca o amigo entre aqueles que tiveram bastante coragem para pensar que o Espírito Santo seja Deus, mas não o bastante para proclamá-lo tal explicitamente. Quebrando todo atraso, ele escreve: “O Espírito é portanto Deus? Certamente! É consubstanciais? Sim, se é verdade que é Deus” (Gregorio Nazianzeno,Oratio 31, 5.10; cf. também Oratio 6: “Até quando esconderemos a lâmpada debaixo do móvel e não proclamaremos em alta voz a plena divindade do Espírito Santo?”).

Se, portanto, Basílio não fala, sobre a teologia do Espírito Santo, nem a primeira nem a última palavra, por que escolher justamente ele como nosso mestre de fé no Paráclito? É que Basílio, como já Atanásio, está mais preocupado pela “coisa” do que pela sua formulação, mais pela plena divindade do Espírito do que pelos termos com os quais expressar essa fé. O que mais lhe interessa, para colocá-lo nos termos de Tomás de Aquino, é a coisa e não a sua enunciação. Ele nos transporta no coração da pessoa e da ação do Espírito Santo.

Basílio tem uma Pneumatologia concreta, vivida, não escolástica, mas “funcional” no sentido mais positivo do termo, e é aquele que a faz particularmente atual e útil para nós hoje. Por causa da conhecida questão do Filioque, a pneumatologia acabou restringindo-se nos séculos, quase que exclusivamente, ao problema do modo da procissão do Espírito Santo: se somente do Pai como dizem os orientais, ou também do Filho, como professam os latinos. Algo da pneumatologia concreta dos Padres foi passada nos tratados sobre “Os Sete Dons do Espírito Santo”, mas limitado ao âmbito da santificação pessoal e à vida contemplativa.

O Concílio Vaticano II iniciou uma renovação neste campo, por exemplo, quando passou os carismas da hagiografia, ou seja da vida dos santos, para a eclesiologia, ou seja para a vida da Igreja, falando deles na Lumen Gentium (Cfr. Lumen gentium, 12.). Mas foi apenas um começo; ainda há muito a ser feito para destacar a ação do Espírito Santo em toda a vivência do povo de Deus. Na ocasião do XVI centenário do Concílio Ecumênico de Constantinopla do 381, o Beato João Paulo II escreveu uma carta apostólica na qual entre outras coisas dizia: “Todo o trabalho de renovação da Igreja que o Concílio Vaticano II tão providencialmente propôs e começou … não pode ser realizado a não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda da sua luz e da sua força” (João Paulo II. “Em Concílio Costantinopolitano I”, em AAS 73, 1981, p. 521.). Basílio, veremos, será nosso guia neste caminho.

3. O Espírito Santo na história da salvação e na Igreja

É interessante conhecer a origem do seu tratado sobre o Espírito Santo. Curiosamente está ligada à oração do Gloria Patri. Durante uma liturgia, Basílio tinha pronunciado a doxologia às vezes na forma: “Glória ao Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo”, às vezes sob a forma: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”. Esta segunda forma esclarecia mais que a primeira a igualdade das três pessoas, coordenando-as, ao invés de subordiná-las, entre si. Na atmosfera superaquecida das discussões sobre a natureza do Espírito Santo, a coisa provocou protestos e Basílio escreveu a sua obra para justificar as suas ações; na prática, para defender contra os hereges macedonianos a plena divindade do Espírito Santo.

Mas vamos direto ao ponto que faz a doutrina de Basílio especialmente atual: a sua capacidade de destacar a ação do Espírito em cada momento da história da salvação e em cada setor da vida da Igreja. Começa da obra do Espírito na criação.

“Na criação dos seres a causa primeira de tudo o que existe é o Pai, a causa instrumental o Filho, a causa aperfeiçoadora é o Espírito. É pela vontade do Pai que os espíritos criados subsistem; é pela força operativa do Filho que são conduzidos ao ser e pela presença do Espírito que chegam à perfeição… Se tentas tirar o Espírito da criação, todas as coisas se misturarão e a vida delas aparece sem lei, sem ordem, sem qualquer determinação” (Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 38 (PG 32, 137B); trad. ital. di E. Cavalcanti, L’esperienza di Dio nei Padri Greci, Roma 1984, Tradução portuguesa nossa).

Santo Ambrósio retomará de Basílio este pensamento tirando dele uma conclusão sugestiva. Referindo-se aos primeiros dois versos do Gênesis (“a terra estava deserta e sem forma e as trevas cobriam o abismo”) ele observa:

“Quando o Espírito começou a pairar sobre isso, o criado não tinha ainda nenhuma beleza. Em vez disso, quando a criação recebeu a operação do Espírito, obteve todo este esplendor de beleza que a fez brilhar como ‘mundo’ ” (Ambrogio, Sobre o Espírito Santo, II, 32.).

Em outras palavras, o Espírito Santo é aquele que faz o criado passar do caos para o cosmos, que faz dele algo belo, ordenado, limpo: um “mundo” (mundus) precisamente,  de acordo com o significado original desta palavra e da palavra grega cosmos. Agora nós sabemos que a ação criadora de Deus não se limita ao instante inicial, como se acreditava na visão deísta ou mecanicista do universo. Deus não “foi” uma vez, mas sempre “é” criador. Isso significa que Espírito Santo é aquele que faz passar o universo, a Igreja e cada pessoa, do caos ao cosmos, ou seja: da desordem à ordem, da confusão à harmonia, da deformidade à beleza, do velho ao novo. Não, é claro, mecanicamente e abruptamente, mas no sentido de que está trabalhando nela e guia a sua evolução para uma finalidade. Ele é aquele que sempre “cria e renova a face da terra” (cf. Sl 104,30).

Isso não significa, explicava Basílio naquele mesmo texto, que o Pai tinha criado algo imperfeito e “caótico” que tinha necessidade de correções; simplesmente, era o plano e a vontade do Pai de criar por meio do Filho e conduzir os seres à perfeição por meio do Espírito.

Da criação o santo Doutor passa a ilustrar a presença do Espírito na obra da redenção:

“No que diz respeito ao plano de salvação (oikonomia) para o homem por obra do nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo, estabelecido segundo a vontade de Deus, quem poderia negar que se realiza por meio da graça do Espírito?” (Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39.).

Chegando aqui, Basílio se abandona a uma contemplação da presença do Espírito na vida de Jesus que está entre as passagens mais bonitas da obra e abra à pneumatologia um campo de pesquisa que só recentemente começou a ser reconsiderado (J.D.G.Dunn, Jesus and the Spirit,London 1988.). O Espírito Santo está em ação já no anúncio dos profetas e na preparação para a vinda do Salvador; é pelo seu poder que se realiza a encarnação no seio de Maria; é ele o crisma com o qual Jesus foi ungido por Deus no batismo. Toda obra sua foi realizada com a presença do Espírito. Este “estava presente quando foi tentado pelo diabo, quando fazia milagres, não o deixou quando ressuscitou dos mortos, e no dia da Páscoa o derramou sobre os discípulos (cf. Jo 20, 22 s.). O Paráclito foi “o companheiro inseparável” de Jesus ao longo da sua vida.

Da Vida de Jesus, São Basílio passa a ilustrar a presença do Espírito na Igreja:

“E a organização da Igreja, não é claro e indiscutível que é obra do Espírito? Ele próprio deu à Igreja, diz Paulo, ‘em primeiro lugar os apóstolos, depois os profetas, depois os mestres … Esta ordem está organizada de acordo com a diversidade dos dons do Espírito” (Basilio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39).

Na anáfora que leva o nome de São Basílio – que a nossa atual Oração Eucarística IV tem seguido de perto -, o Espírito Santo tem um lugar central.

A última imagem retrata a presença do Paráclito na escatologia: “Também no momento do evento da esperada manifestação do Senhor aos céus – escreve Basílio – não está ausente o Espírito Santo”. Neste momento haverá, para os salvos, a passagem das “primícias” para a posse plena do Espírito” e para os réprobos a separação definitiva, o corte claro, entre a alma e o Espírito (Ib. XVI, 40.).

4. A alma e o Espírito

São Basílio não fica, porém, com a ação do Espírito na história da salvação e na Igreja. De ascético e  homem espiritual, o seu principal interesse é pela ação do Espírito na vida de cada batizado. Embora ainda sem estabelecer a distinção e a ordem das três vias que se tornarão clássicas mais tarde, ele destaca maravilhosamente a ação do Espírito Santo na purificação da alma do pecado, na sua iluminação e na divinização que ele chama também “intimidade com Deus” (Ib. XIX, 49.).

Só podemos ler a página na qual, em referência constante com as Escrituras, o santo descreve essa ação e deixar-nos conquistar pelo seu entusiamo:

“A relação de familiaridade do Espírito com a alma, não é uma aproximação no espaço – de fato, como poderia aproximar-se o incorpóreo corporalmente? –  mas, em vez disso, consiste na exclusão das paixões, as quais, como consequência da sua atração pela carne, chegam à alma e a separam da união com Deus. Purificados da imundicie da qual tinha se sujado por meio do pecado e voltado para a beleza natural, como tendo restituido à uma imagem real a antiga forma por meio da purificação, só assim é possível aproximar-se do Paráclito. Ele, como um sol, reconhecendo o olho purificado, te mostrará em si mesmo a imagem do invisível. Na beata contemplação da imagem, verás a inefável beleza do arquétipo. Por meio dele se elevam os corações, os fracos são levados pela mão, aqueles que progridem atingem a perfeição. Ele, iluminando aqueles que foram purificados de toda mancha, torna-os espirituais através da comunhão com ele. E como os corpos claros e transparentes, quando um raio os atinge, tornam-se eles próprios brilhantes e refletem um outro raio, assim as almas portadoras do Espírito são iluminadas pelo Espírito; elas mesmas se tornam plenamente espirituais e transmitem aos outros a graça. Daqui vem a presciência das coisas futuras; a compreensão dos mistérios; a percepção das coisas ocultas; as distribuições dos carimas, a cidadania celeste; a dança com os anjos; a alegria sem fim; a permanência em Deus; a semelhança com Deus; o cumprimento dos desejos: tornar-se Deus” (Ib. IX,23.)

Não foi difícil para os estudiosos descobrir por detrás do texto de Basílio imagens e conceitos derivados da Enéade de Plotino e falar, a este respeito, de uma infiltração estranha no corpo do cristianismo. Na verdade, trata-se de um tema puramente bíblico e paulino que se expressa, como era correto, em termos familiares e significativos para a cultura do tempo. Na base de tudo Basílio não coloca a ação do homem – a contemplação – , mas a ação de Deus e a imitação de Cristo. Estamos na antítese da visão de Plotino e de toda filosofia. Tudo, para ele, começa com o batismo que é um novo nascimento. O ato decisivo não está no fim mas no início do caminho:

“Como na corrida dupla dos estados, uma parada e um descanso separam os caminhos em sentidos opostos, assim também na mudança de vida é necessário que uma morte se coloque no meio das duas vidas para colocar fim ao que precede e para começar as coisas sucessivas. Como conseguir descer aos infernos? Imitando a sepultura de Cristo por meio do batismo” (Ib. XV,35.).

O esquema básico é o mesmo de Paulo. No capítulo sexto da Carta aos Romanos o Apóstolo fala da purificação radical do pecado que acontece no batismo e no capítulo oitavo descreve a luta que, sustentado pelo Espírito, o cristão deve levar pelo resto da sua existência, contra os desejos da carne, para avançar na vida nova:

“Os que vivem de acordo com a carne aspiram às coisas da carne; mas os que vivem de acordo com o Espírito aspiram às coisas do Espírito. De fato, a carne aspira ao que conduz à morte; mas o Espírito aspira ao que dá vida e paz. É que a carne aspira à inimizade com Deus, uma vez que não se submete à lei de Deus; aliás nem sequer é capaz disso. Os que vivem sob o domínio da carne são incapazes de agradar a Deus […]. Portanto, irmãos, somos devedores, mas não à carne, para vivermos de acordo com a carne. É que, se viverdes de acordo com a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis”. (Rm 8, 5-13).

Não devemos admirar-nos se para ilustrar a tarefa descrita por São Paulo, Basílio tenha usado uma imagem de Plotino. Ela está na origem de uma das metáforas mais universais da vida espiritual e hoje fala a nós o mesmo que aos cristãos daquela época:

“Vamos, retornes a ti mesmo e olhes; e se ainda não te ves bonito, imita o autor de uma estátua que tem que conseguir a sua beleza: em parte bate com o cinzel, em parte aplaina; aqui engrossa, ali afina, até quando tenha conseguido expressar um belo rosto na estátua. Igualmente também tu tires o supérfluo, endireita o que está torto, e, por força de purificar o que é escuro, faça que se torne brilhante e não deixe de atormentar a tua estátua até que o divino esplendor da virtude não brilhe diante de ti” [(Plotino, Enneadi I, 9 (trad. ital. di V. Cilento, vol. I,  Laterza, Bari 1973, p. 108, tradução portuguesa nossa].

Se a escultura, como dizia Leonardo da Vinci, é a arte de remover, tem razão o filósofo quando compara a purificação e a santidade com a escultura. Para o cristão não se trata porém de alcançar uma beleza abstrata, de construir uma bonita estátua, mas de trazer à luz e tornar mais brilhante a imagem de Deus que o pecado tende constantemente a cobrir.

Conta-se que um dia Miquelângelo, passeando em um pátio de Florênça, viu um bloco de mármore bruto coberto de poeira e lama. Parou de repente para contemplá-lo, depois, como iluminado por um súbito clarão, disse aos presentes: “Nesta massa de pedra está escondido um anjo; quero tirá-lo daí!” E começou a trabalhar com um cinzel para moldar o anjo que havia vislumbrado. Assim é também conosco. Somos ainda massa de pedra bruta, tendo acima muita “terra” e muitos pedaços inúteis. Deus Pai nos olha e diz: “Neste pedaço de pedra se esconde a imagem do meu Filho; quero tirá-la daí, para que brilhe eternamente do meu lado no céu!” E para fazer isso usa o cinzel da cruz, nos poda (cf. Jo 15,2)

Os mais generosos, não só suportam os golpes do cinzel que vêm de fora, mas também colaboram, o quanto lhes seja concedido, impondo-se pequenos, ou grandes, mortificações voluntárias e quebrando a vontade velha deles. Dizia um padre do deserto: “Se queremos ser completamente livres, aprendamos a quebrar a nossa vontade, e assim, aos poucos, com a ajuda de Deus, avançaremos e chegaremos à plena liberação das paixões. É possível quebrar dez vez a própria vontade em brevíssimo tempo e lhes digo como. Você está passeando e vê algo; o seu pensamento lhe diz: ‘Olha lá’, mas ele responde ao seu pensamento: ‘Não, não olho!’, e quebra a sua vontade” (Doroteo di Gaza, Insegnamenti 1,20 (SCh 92, p. 177).

Este antigo Padre tem outros exemplos tirados da vida monástica. Se está falando mal de alguém, talvez do superior; o teu homem velho diz: “Participes também tu; diga aquilo que sabes. Mas tu respondes: “Não”. E mortificas o homem velho… Mas não é difícil alongar a lista com outros atos de renúncia, próprios do estado ao qual se vive e do trabalho que se faz.

Enquanto se vive favorecendo os desejos da carne nós nos parecemos aos dois famosos “Bronzes de Riace”, quando foram encontrados no fundo do mar, todo cobertos de crustáceos e quase irreconhecíveis como figuras humanas. Se também nós queremos brilhar, como estas duas obras-primas após a sua restauração, a Quaresma é o momento oportuno para colocar mãos à obra.

5. Uma mortificação “espiritual”

Existe um ponto em que a transformação do ideal de Plotino em ideal cristão permaneceu incompleta, ou pelo menos pouco explícita. São Paulo, ouvimos, diz: “Se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, vivereis.” O Espírito não é, portanto, só o fruto da mortificação, mas também o que a torna possível; não está só no final do caminho, mas também no início. Os apóstolos não receberam o Espírito em Pentecostes porque se tornaram fervorosos; tornaram-se fervorosos porque receberam o Espírito.

Os três Padres Capadócios, eram basicamente ascetas e monges; Basílio, em particular, com as suas Regras monásticas (Asceticon!), foi o fundador do monaquismo cenobítico. Isso os levou a destacar fortemente a importância do esforço humano. O irmão e discípulo de Basílio, Gregório de Nissa, vai escrever nesta linha: “Na medida em que desenvolvas tuas lutas pela piedade, nesta mesma medida se desenvolve também a grandeza da alma por meio destas lutas e destes esforços”[(Gregório Nisseno, De instituto christiano (ed. W. Jaeger, Two Rediscovered Works, Leida 1954, p.46)].

Na geração seguinte, esta visão da ascese será retomada e desenvolvida por autores espirituais, como João Cassiano, mas separada da sólida base teológica que tinha em Basílio e em Gregório de Nissa. “É a partir deste ponto – nota Bouyer – que o pelagianismo, colocando o esforço humano antes da graça, terá o seu início”( L. Bouyer, La spiritualità dei Padri, Edizioni Dehoniane, Bologna 1968, p. 295.) Mas este resultado negativo dificilmente pode ser atribuído a Basílio e aos Capadócios.

Voltemos para concluir o motivo que faz com que a doutrina de Basílio sobre o Espírito Santo seja perenemente válida e hoje, dizia, mais do que nunca atual e necessária:  a sua praticidade e adesão à vida da Igreja. Nós latinos temos um caminho privilegiado para fazer nossa e transformar em oração este mesmo tipo de pneumatologia: o hino do Veni Creator.

Ele é do início ao fim uma contemplação orante daquilo que o Espírito concretamente faz: em toda a terra e na humanidade como Espírito Criador; na Igreja, como Espírito de santificação (dom de Deus, água viva, fogo, amor e unção espiritual) e como Espírito carismático (multiforme nos seus dons, dedo da mão direita de Deus, que coloca sobre os lábios a palavra); na vida individual do fiél, como luz para a mente, amor para o coração, cura para o corpo; como nosso aliado na luta contra o mal e guia no discernimento do bem.

Invoquemo-Lo com as palavras da primeira estrofe, pedindo-lhe para fazer passar também o nosso mundo e a nossa alma do caos para o cosmos, da dispersão para a unidade, da feiúra do pecado para a beleza da graça.

Veni, Creator Spiritus, Ó vinde Espírito criador;

Mentes tuorum visita, visita os teus fiéis no profundo,

Imple superna gratia, derrama a plenitude da graça,

Quae tu creasti pectora, corações que tu criastes somente para ti

4ª Pregação da Quaresma 30-03-2012

de Raniero Cantalamessa

1. As duas dimensões da fé

Santo Agostinho fez, com relação à fé, uma distinção que continua clássica até hoje: a distinção entre as coisas que se creem e o ato de acreditar nelas. “Aliud sunt ea quae creduntur, aliud fides qua creduntur” (Agostinho, De Trinitate XIII,2,5), a fidea quae e a fides qua, como se diz na teologia. A primeira é conhecida também como fé objetiva, a segunda fé subjetiva. Toda a reflexão cristã sobre a fé se desenvolve entre estes dois pólos.

Traça-se duas orientações. Por um lado temos aqueles que enfatizam a importância do intelecto no crer e portanto a fé objetiva, como assentimento às verdades reveladas, por outro lado aqueles que enfatizam a importância da vontade e do afeto, portanto a fé subjetiva, o crer em alguém (“crer em”), mais do que crer em algo (“crer que”); por um lado aqueles que enfatizam as razões da mente e por outro aqueles que, como Pascal, enfatizam “as razões do coração”.

Esta oscilação reaparece sob formas diferentes em cada curva da história da teologia: na Idade Média, na ênfase diferente entre a teologia de Santo Tomás e aquela de São Boaventura; no tempo da Reforma entre a fé confiante de Lutero e a fé católica informada pela caridade; mais tarde, entre a fé dentro dos limites da pura razão de Kant e a fé com base no sentimento de Schleiermacher e do romantismo em geral; mais perto de nós, entre a fé da teologia liberal e aquela existencial de Bultmann, praticamente desprovida de todo conteúdo objetivo.

A teologia católica contemporânea se esforça, como em outras vezes no passado, por encontrar o justo equilíbrio entre as duas dimensões da fé. Superamos a fase em que, por razões polêmicas contingentes, toda a atenção nos manuais de teologia tinha acabado concentrando-se na fé objetiva (fides quae), ou seja, sobre o conjunto das verdades que devem ser cridas. “O ato de fé – lê-se num respeitável dicionário crítico de teologia – na corrente dominante de todas as confissões cristãs, é hoje a descoberta de um Tu divino. A apologética da prova tende a colocar-se detrás de uma pedagogia da experiência espiritual que tende a começar uma experiência cristã, da qual se reconhece a possibilidade inscrita a priori em cada ser humano” (J.-Y. Lacoste et N. Lossky, “Foi“ , no Dictionnaire critique de Théologie, Presses Universitaires de France 1998, p.479, tradução nossa). Em outras palavras, mais que frizar a força da argumentação externa à pessoa, deve-se buscar ajudá-la a encontrar em si mesma a confirmação da fé, tentando despertar aquela centelha que existe no “coração inquieto” de cada homem pelo fato de ser criado “à imagem de Deus”.

Fiz essa premissa porque mais uma vez ela nos permite ver a contribuição que os Padres podem dar ao nosso esforço para dar de novo à nossa fé da Igreja o seu brilho e o seu poder de ataque. O maior entre eles são modelos insuperáveis de uma fé que é ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, preocupada, isto é, pelo conteúdo da fé, ou seja, pela ortodoxia, mas ao mesmo tempo, acreditada e vivida com todo o ardor do coração. O Apóstolo tinha proclamado: “corde creditur” (Rm 10,10), com o coração se crê, e sabemos que com a palavra coração, a Bíblia entende as duas dimensões espirituais do homem, a sua inteligência e a sua vontade, o lugar simbólico do conhecimento e do amor. Neste sentido, os Padres são um elo indispensável para encontrar de novo a fé como se entende na Escritura.

2. “Creio em um só Deus”

Nesta última meditação nos aproximamos dos Padres para renovar a nossa fé no objeto principal da mesma, naquele que está comumente entendido pela palavra “acreditar” e segundo o qual separamos as pessoas entre crentes e não crentes: a fé na existência de Deus. Refletimos, nas meditações passadas, na divindade de Cristo, no Espírito Santo e na Trindade. Mas a fé no Deus Trino é o estágio final da fé, o “plus” sobre Deus revelado por Cristo. Para alcançar esta plenitude é preciso primeiro acreditar em Deus. Antes da fé no Deus trino, está a fé no Deus Uno.

São Gregório Nazianzeno nos lembra a pedagogia de Deus ao revelar-se a nós. No Antigo Testamento é revelado abertamente o Pai e veladamente o Filho, no Novo, abertamente o Filho e veladamente o Espírito Santo, agora, na Igreja, gozamos da plena luz de toda a Trindade. Também Jesus fala de abster-se de dizer aos apóstolos aquelas coisas das quais eles ainda não são capazes de “carregar o fardo” (Jo 16, 12). Também nós devemos seguir a mesma pedagogia com aqueles aos quais queremos anunciar a fé hoje.

A Carta aos Hebreus diz qual é o primeiro passo para se aproximar de Deus: “Pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram” (Hb 11,6). Este é o fundamento de todo o resto e que permanece também depois de ter acreditado na Trindade. Vamos ver como os Padres nos podem inspirar a partir deste ponto de vista, tendo sempre presente que o nosso objetivo principal não é apologético, mas espiritual, orientado a fortalecer a nossa fé, mais do que comunicá-la aos outros. O guia que escolhemos para esta caminhada é São Gregório de Nissa.

Gregório de Nissa (331-394), irmão de sangue de São Basílio, amigo e contemporâneo de Gregório Nazianzeno, é um Padre e doutor da Igreja, do qual se descobre, cada vez mais claramente, a estatura intelectual, bem como a importância decisiva no desenvolvimento do pensamento cristão. “Um dos pensadores mais poderosos e originais que conhece a história da Igreja” (L. Bouyer), “o fundador de uma nova religiosidade mística e estática” (H. von Campenhausen).

Os Padres não se encontram, como nós, com o dever de demonstrar a existência de Deus, mas a unicidade de Deus; não tiveram que combater o ateísmo, mas o politeísmo. Veremos, porém, como a estrada traçada por eles para alcançar o conhecimento do Deus único, é a mesma que pode levar o homem de hoje à descoberta de Deus tout court.

Para valorizar a contribuição dos Padres e particularmente do Nisseno, é necessário saber como se apresentava o problema da unicidade de Deus no tempo deles. À medida que se explicitava a doutrina da Trindade, os cristãos viram-se expostos à mesma acusação que eles mesmos dirigiam aos pagãos: aquela de acreditar em mais divindades. Eis porque o credo dos cristãos que, em todas as suas mais variadas redações, por três séculos, começava com as palavras “Creio em Deus” (Credo in Deus), a partir do IV século, registra um pequeno mais significativo acréscimo que nunca mais será omitido: “Creio em um só Deus (Credo in unum Deum).

Não é necessário refazer aqui o caminho que levou a este resultado; pode-se certamente começar pelo final dele. Pelo final do século IV terminou a transformação do monoteísmo do Antigo Testamento para o monoteísmo trinitário dos cristãos. Os latinos expressavam os dois aspectos do mistério com a fórmula “uma substância e três pessoas”, os gregos com a fórmula “três hipóstases, uma só ousia”. Depois de um acalorado debate, o processo aparentemente terminou com um acordo completo entre as duas teologias. “Pode-se conceber – exclamava o Nazianzeno – um acordo mais completo e dizer mais absolutamente do que isso a mesma coisa, ainda se com palavras diferentes?” [Gregorio Nazianzeno, Oratio 42, 16 (PG 36, 477)]

Uma diferença, na realidade, permanecia entre os dois modos de exprimir o mistério; hoje é normal expressá-la assim: os Gregos e os latinos, na consideração da Trindade, começam de pontos diferentes; os gregos partem das pessoas divinas, ou seja, da pluralidade, para chegarem à unidade de natureza; os latinos, vice-versa, partem da unidade da natureza divina, para alcançar as três pessoas. “O latino considera a personalidade como um modo da natureza; o grego considera a natureza como o conteúdo da pessoa” (Th. De Régnon, Études de théologie positive sur la Sainte Trinité, I, Paris 1892, 433, tradução nossa).

Acredito que a diferença pode ser expressa também de outro modo. Tanto latinos como gregos, partem da unidade de Deus; seja o símbolo grego que aquele latino começa dizendo: “Creio em um só Deus” (Credo in unum Deum!). Só que esta unidade para os latinos é concebida ainda como impessoal ou pré-pessoal; é a essência de Deus que se especifica depois no Pai, Filho e Espírito Santo, sem, é claro, ser pensada como pré-existente às pessoas. Para os gregos, no entanto, trata-se de uma unidade já personalizada, porque para eles “a unidade é o Pai, do qual e para o qual contam-se as outras pessoas” [(S. Gregorio Naz., Or. 42, 15 (PG 36, 476)] O primeiro artigo do credo dos gregos também reza assim “Creio em um só Deus Pai onipotente” (Credo in unum Deum Patrem Omnipotentem), só que “Pai onipotente” aqui não está separado por ‘unum Deum’, como no credo latino, mas faz uma coisa só com ele: “Creio em um só Deus que é o Pai Onipotente”.

Esta é a maneira pela qual todos os três Capadócios concebem a unicidade de Deus, mas sobretudo São Gregório de Nissa. A unidade das três Pessoas divinas é dada, para ele, pelo fato de que o Filho é perfeitamente (substancial) “unido” ao Pai, como o é também o Espírito Santo por meio do Filho” [Cf. Gregorio Nisseno, Contra Eunomium 1,42 (PG 45, 464)]. Esta é a tese precisa que dificulta os latinos que vêem nela o perigo de subordinar o Filho ao Pai e o Espírito a um e a outro: “O nome ‘Deus’ – escreve Agostinho – indica toda a Trindade, não somente o Pai”[ Agostinho, De Trinitate, I, 6, l0; cf. também IX, 1, 1 («credamus Patrem et Filium et Spiritum Sanctum esse unum Deum»)].

Deus é o nome que damos à divindade quando a consideramos não em si mesma, mas em relação com os homens e com o mundo, porque tudo o que ela obra fora de si obra-o em conjunto, como única causa eficiente. A conclusão importante que podemos tirar de tudo isso é que a fé cristã é também monoteísta; os cristãos não renunciaram a fé hebraica em um só Deus, ao contrário a enriqueceram, dando um conteúdo e um senso novo e maravilhoso a esta unidade. Deus é uno, mas não solitário!

3. “Moisés entrou na nuvem”

Por que escolher São Gregório Nisseno como guia para o conhecimento deste Deus diante do qual estamos como criaturas perante o Criador? A razão é que este Padre foi o primeiro no cristianismo que abriu uma via para o conhecimento de Deus que se revela particularmente sensível à situação religiosa do homem de hoje: a via do conhecimento que passa pelo… não conhecimento.

A ocasião lhe foi oferecida pela polêmica com o herege Eunomio, o representante de um arianismo radical contra o qual escrevem todos os grandes Padres que viveram na última metade do IV século: Basílio, Gregório Nazianzeno, o Crisóstomo e, o mais agudo de todos o Nisseno. Eunomio identificava a essência divina no ser “não gerado” (agennetos). Neste sentido, para ele, ela era perfeitamente cognoscível e não tem nenhum mistério; nós podemos conhecer a Deus tanto quanto ele se conhece a si mesmo.

Os Padres responderam em coro apoiando a tese da “incognoscibilidade de Deus” na sua realidade íntima. Mas, enquanto os outros permaneceram numa refutação de Eunomio baseada principalmente nas palavras da Bíblia, o Nisseno, foi mais longe demonstrando que o próprio reconhecimento dessa incognoscibilidade é a via para o verdadeiro conhecimento (theognosia) de Deus. O faz retomando um tema já esboçado por Filão (Cf. Filão Al., De posteritate, 5,15): aquele de Moisés que encontra Deus entrando na nuvem. O texto bíblico é Êxodo 24, 15-18 e eis aqui o seu comentário:

“A manifestação de Deus ocorre primeiro por Moisés na luz; mais tarde falou com ele na nuvem, enfim, tornado mais perfeito, Moisés contempla Deus nas trevas. A passagem da escuridão à luz é a primeira separação das idéias falsa e errôneas de Deus; a inteligência mais atenta às coisas escondidas, conduzindo a alma por meio das coisas visíveis até aquelas invisíveis, é como uma nuvem que escurece todo o sensível e acostuma a alma à contemplação do que está escondido; enfim, a alma que caminhou por estas vias até as coisas celestiais, tendo deixado as coisas terrenas tanto quanto possível à natureza humana, entra no santuário do conhecimento divino (theognosia) rodeado de todas as partes pela escuridão divina”[(Gregorio Niss., Omelia XI sul Cantico (PG 44, 1000 C-D)].

O verdadeiro conhecimento e a visão de Deus consistem “em ver que ele é invisível, porque aquele que a alma procura transcende todo conhecimento, separado de qualquer parte da sua incompreensibilidade como de umas trevas” [(Vida de Moisés, II,163 (SCh 1bis, p. 210 s.)]. Nesta fase final do conhecimento, não há um conceito de Deus, mas aquilo que o Nisseno, com uma expressão tornada famosa, define “um certo sentimento de presença” – aisthesin tina tes parusia, [ Homilia XI sobre o Cântico (PG 44, 1001B)]. Um sentir não com os sentidos do corpo, entende-se, mas com aqueles interiores do coração. Este sentimento não é o superamento da fé, mas a sua atuação mais alta: “Com a fé – diz a noiva do Cântico (Ct 3, 6) – encontrei o amado”. Não o “compreende”; faz algo melhor, o “tem”! [Homilia VI sobre o Cântico (PG 44, 893 B-C)].

Estas idéias do Nisseno exerceram uma enorme influência no pensamento cristão posterior, ao ponto de ser considerado o próprio fundador da mística cristã. Por meio de Dionísio Areopagita e Máximo o Confessor que retomam este tema dele, a sua influência se estende pelo mundo grego e aquele latino. O tema do conhecimento de Deus na escuridão volta em Angela de Foligno, no autor de Nube della non-conoscenza (Nuvem do não-conhecimento) , no tema da “douta ignorância” de Nicolau Cusano, naquele da “noite escura” de João da Cruz e em muitos outros .

4. Quem humilha realmente a razão?

Agora gostaria de mostrar como a intuição de São Gregório Nisseno pode ajudar-nos a aprofundar a nossa fé e a indicar para o homem moderno, tornado cético das “cinco vias” da teologia tradicional, algum caminho que o leve para Deus.

A novidade introduzida pelo Nisseno no pensamento cristão é que para encontrar a Deus é necessário ir além dos limites da razão. Estamos como antípodas do projeto de Kant de manter a religião “dentro dos limites da simples razão.” Na cultura secularizada de hoje foi-se além de Kant: estes em nome da razão (ao menos da razão prática) “postulavam” a existência de Deus, os racionalistas posteriores negam também isso.

Compreende-se disso o quanto seja atual o pensamento do Nisseno. Ele demonstra que a parte mais alta da pessoa, a razão, não está excluída da busca de Deus; que não há uma obrigação de se escolher entre seguir a fé e seguir a inteligência. Entrando na nuvem, ou seja, acreditando, a pessoa humana não renuncia à própria racionalidade, mas a transcende, que é uma coisa bem diferente. O crente aprofunda, por assim dizer, os recursos da própria razão, lhe permite colocar o seu ato mais nobre, porque, como afirma Pascal, “o ato supremo da razão está no reconhecer que há uma infinidade de coisas que a superam” (B.Pascal, Pensamentos 267 Br, tradução nossa).

São Tomás de Aquino, justamente considerado como um dos mais ferrenhos defensores das exigências da razão, escreveu: “Diz-se que no final do nosso conhecimento, Deus é conhecido como o Desconhecido, porque o nosso espírito chega ao extremo do seu conhecimento de Deus quando finalmente percebe que a sua essência está acima de tudo o que pode conhecer aqui embaixo” (Tomás, In Boet. Trin. Proem. q.1,a.2, ad 1, tradução nossa). No mesmo instante que a razão reconhece o seu limite, o quebra e o supera. Compreende que não pode compreender, “vê que não pode ver”, dizia o Nisseno, mas compreende também que um Deus compreendido não seria mais Deus. É por obra da razão que se produz este reconhecimento, que é, por isso, um ato puramente racional. Essa é, literalmente, uma “douta ignorância”, um ignorar “com boa razão”.

Deve-se, portanto, dizer exatamente o oposto, ou seja, quem coloca um limite para a razão e a humilha é quem não reconhece essa capacidade de transcender-se. “Até agora – escreveu Kierkegaard –sempre se tem falado assim: ‘o dizer que não se pode entender esta ou aquela coisa, não satisfaz a ciência que quer entender’. Eis o erro. Deve-se dizer justamente o contrário: quando a ciência humana não queira reconhecer que existe algo que ela não pode entender, ou – de modo ainda mais preciso – algo que ela com clareza pode ‘entender que não pode entender’, então tudo fica bagunçado. É portanto uma tarefa do conhecimento humano entender que existem e quais são as coisas que ele não pode entender”( S. Kierkegaard, Diario VIII A 11, tradução nossa).

Mas de que tipo de escuridão se trata? Da nuvem que, em algum momento, ficou entre os egípcios e os judeus se dizia que ela era “tenebrosa para uns e luminosa para os outros” (cf. Ex 14, 20). O mundo da fé é obscuro para quem o assiste de fora, mas é brilhante para aqueles que entram nele. De uma luminosidade especial, do coração mais que da mente. Na Noite Escura de São João da Cruz (uma variante do tema da nuvem do Nisseno!) a alma declara que procede pelo seu novo caminho, “sem orientação e luz, além da que brilha no meu coração”. Uma luz, entretanto, que é “mais segura do que o sol do meio-dia” (João da Cruz, Noite Escura, canto da alma, estrofe 3-4, tradução nossa).

A beata Ângela de Foligno, uma das maiores representantes da visão de Deus na escuridão, diz que a Mãe de Deus “foi tão inefavelmente unida à suma e absolutamente inqualificável Trindade, que em vida desfrutou da alegria que gozam os santos no céu, a alegria da incompreensibilidade (gaudium incomprehensibilitatis), porque entendem que é possível entender” (Il libro della beata Angela da Foligno, ed. Quaracchi 1985, p. 468, tradução nossa). É um excelente complemento para a doutrina de Gregório de Nissa sobre a incognoscibilidade de Deus. Nos assegura que mais que humilhar-nos e privar-nos de algo, tal incognoscibilidade existe para preencher o homem de entusiasmo e de alegria; nos diz que Deus é infinitamente maior, mais bonito, melhor, do que tudo o que possamos imaginar, e que é tudo isso por nós, para que a nossa alegria seja completa; para que nunca nos passe pela cabeça a idéia de que poderemos ficar enjoados de passar a eternidade perto dele!

Outra idéia do Nisseno que se revela útil para uma comparação com a cultura religiosa moderna é aquela do “sentimento de uma presença” que ele coloca no topo do conhecimento de Deus. A fenomenologia religiosa esclareceu, com Rudolph Otto, a existência de um dado primário, presente em diferentes graus de pureza, em todas as culturas e em todas as idades que ele chama de” sentimento do numinoso”, ou seja, o senso, mistura de terror e de atração, que capta improvisadamente o ser humano diante do manifestar-se do sobrenatural ou do supraracional (R. Otto, Il Sacro, Feltrinelli, Milano 1966). Se a defesa da fé, de acordo com as últimas diretrizes da apologética lembradas no início, “se coloca atrás de uma pedagogia da da experiência espiritual, da qual se reconhece a possibilidade inscrita a priori em cada ser humano”, não podemos negligenciar o acoplamento que nos dá a moderna fenomenologia religiosa.

Claro, o “sentimento de uma certa presença” do Nisseno é algo diverso do confuso senso do numinoso e da emoção sobrenatual, mas as duas coisas têm algo em comum. Uma é o início de um caminho para a descoberta do Deus vivo, a outra é o final. O conhecimento de Deus, dizia o Nisseno, começa com uma passagem das trevas para a luz e termina com uma passagem da luz para as trevas. Não se chega ao segundo sem passar pelo primeiro; em outras palavras, sem antes ser purificados pelo pecado e pelas paixões. “Já teria abandonado os prazeres – diz o libertino – se tivesse a fé. Mas eu respondo, diz Pascal: Já terias a fé se tivesses abandonado os prazeres” (Pascal, Pensamentos, 240 Br, tradução nossa).

A imagem que, graças a Gregório Nisseno, nos acompanhou em toda esta meditação, foi aquela de Moisés que sobe o Monte Sinai e entra na nuvem. O aproximar-se da Páscoa nos empurra a ir além desta imagem, de passar do símbolo para a realidade. Há uma outra montanha, onde um outro Moisés encontrou a Deus “enquanto se escurecia toda a terra” (Mt 27, 45). No monte Calvário o homem Deus, Jesus de Nazaré, uniu para sempre o homem a Deus. No final do seu Itinerario della mente a Dio (itinerário da mente à Deus), São Boaventura escreve:

“Depois de todas essas considerações, o que resta à nossa mente é elevar-se especulando não somente por acima deste mundo sensível, mas também por acima de si mesmo; e nesta subida Cristo é caminho e porta, Cristo é escada e veículo… Aquele que olha com cuidado este propiciatório fixando-o suspenso na cruz, com fé, esperança e caridade, com devoção, admiração, louvor, veneração e júbilo, realiza com ele a Páscoa, ou seja a passagem” [(Boaventura, Itinerarium mentis in Deum, VII, 1-2 (Opere di S. Bonaventura, V,1, Roma, Città Nuova 1993, p. 564)].

Que o Senhor Jesus nos conceda passar uma bela e Santa Páscoa com ele!

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